“O ESTADO SOU EU” – Sérgio França Coelho*

Atribuída ao Rei Luís XIV (1638-1715), também conhecido como Rei-Sol (no original le Roi Soleil), “O Estado sou eu” é o que melhor define o momento da politica brasileira. O que assistimos no dia 24 de abril foi uma confissão em cadeia nacional de ingerência politica sobre órgãos de controle em meio a uma guerra pessoal contra os demais poderes republicanos. Formalmente, a República Federativa do Brasil tem resistido. Na prática, ela agoniza por falta de consciência do espirito republicano em todos os níveis. Desde o cidadão mais humilde, até a mais alta autoridade no país.

Luís XIV (personagem da frase que intitula este artigo) governou a França entre 1643 e 1715, e a frase supostamente proferida traduz o espírito de um período histórico onde havia uma centralização total do poder na figura do Rei. O Absolutismo Monárquico.

O raciocínio por trás da frase de Luís XIV condensa a lógica da monarquia absolutista. Estava nas mãos do Rei o controle de todos os aspectos fundamentais do seu território: a segurança, a manutenção das contas do governo, os acordos internacionais, a gestão do espaço público, a logística da guerra, etc. Em síntese, todas as decisões fundamentais eram canalizadas para o Rei. Tudo o que era relevante para o governo estava sob a sua autoridade.

No fundo, Luís XIV personificava o auge do poder que se poderia ter no contexto europeu. A frase completa em questão teria sido: “Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu”. Luís XIV, suposto autor da frase, acreditava na tese da origem divina do poder real.

Algo semelhante ao que estamos ouvindo atualmente? Sim, tem quem defenda que o presidente foi enviado por Deus!!!

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De Luís XIV para cá, três séculos se passaram. Tivemos a revolução francesa, as guerras mundiais, o apogeu e queda do nazismo, a guerra fria, a decadência dos estados socialistas, e o apogeu de um estado norte americano que convive com a alternância do poder entre republicanos e democratas.  Por aqui, ainda não entendemos a lição do ensino fundamental. O significado das divisões do poder em executivo, legislativo e judiciário, e do estado democrático de direito orientado pelo espirito republicano.

Após o pronunciamento do Ministro da Justiça Sérgio Moro, explodiram nas redes sociais manifestações de toda natureza. Teve gente que argumentou que Moro estava pressionado porque não conseguiu manter preso os políticos que ele mesmo condenou em primeira instancia!? Outros, o acusaram de não ter enfrentado as medidas de restrição dos governadores!? De não ter derrubado as medidas do STF, dentre outros descalabros.  Voltamos ao absolutismo europeu e não fui avisado??

Chega a ser desalentador constatar tamanha ignorância até daqueles que deveriam ter o mínimo de noção dos princípios que regem uma democracia de direito.

Na administração pública as coisas não funcionam bem como as pessoas pensam, ou gostariam que fosse. Existem regras, criadas justamente para proteger o cidadão do gigantesco poder concentrado nas mãos do estado, que um dia, foi do Rei. Entendo que isso não seja algo tão claro ao senso comum, pois o povo pode alegar ignorância. Um magistrado jamais.

Sérgio Moro, na condição de ex-juiz sabia dos riscos que o governo, do qual ele fazia parte, corria ao atacar as instituições de um estado democrático de direito. De não se respeitar a divisão dos poderes, e dos princípios da administração pública previstos no artigo 37 da constituição, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, razões pelas quais um chefe de estado tem o dever de distinguir suas preferencias politicas partidárias ou de grupos, da política institucional, que transcende partidos e preferências pessoais. Um chefe de estado precisa entender isso se quiser deixar um legado a sua nação

Na administração pública existem regras, criadas justamente para proteger o cidadão do gigantesco poder concentrado nas mãos do estado, que um dia, foi do Rei.

A decisão de levar adiante a queda de braço com o agora ex-ministro Moro, em meio à crise de saúde/econômica em que vive o país foi tão insana, que eu fui um dos que acreditou que as especulações do dia 23 de abril não passavam de fake news.

Com toda a minha experiência eu já não deveria ser surpreendido com uma decisão tão antirrepublicana e pouco inteligente do ponto de vista político.  

As pessoas do entorno do presidente deveriam ter a capacidade de enxergar o poder destrutivo que a coletiva do Ministro Sérgio Mora teria numa eventual saída do cargo, colocando em risco a estabilidade político/institucional do governo. E responsabilidade da equipe de governo alertar um chefe de estado das consequências de seus atos, e as declarações de interferência política na Policia Federal e no COAF são tão graves que os efeitos desta crise são imprevisíveis até para os mais experientes analistas.

A emblemática frase de Luís XIV que ecoou pela história das civilizações ficou marcada pelo legado do absolutismo, que aprofundou a crise no país até a Revolução Francesa, iniciada em 1789. O Brasil não precisa de absolutistas de esquerda, nem de direita.

Olhar a história não significa governar preso ao passado, mas aprender com ele para que possamos seguir a marcha da evolução no futuro. A partição dos poderes foi criada para proteger o povo dos absolutistas do presente, e mesmo com os problemas que temos, não será rompendo com as conquistas fundamentais do estado de direito que vamos ingressar na modernidade.

Nosso progresso está em perigo

*Sérgio Ricardo de França Coelho, pesquisador e consultor em Gestão de Segurança e Defesa Social, é diretor Presidente do Instituto IPECS, e um dos fundadores do Movimento Protagonismo Cidadão