O CANDIDATO QUE DESISTIU, SEM NUNCATER SIDO. O PODER DE UMA NARRATIVA – Wladimir Mattos*

Concordando ou não com a decisão, penso que a mensagem teria sido mais verdadeira se o nobre deputado admitisse que decidiu renunciar porque entendeu que o grupo atual no poder deveria eleger o sucessor.

Wladimir Mattos

Pelo dicionário da língua portuguesa podemos definir Narrativa como a exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens.

No contexto atual, e deste artigo, em tempos de informação globalizada, as narrativas tem sido usadas para “distorcer ou adequar” os fatos, induzindo a interpretação de quem os vê, de acordo com as conveniências dos seus disseminadores.

Vamos analisar esta teoria a um fato político na cidade de Santos. A decisão do deputado estadual professor Kenny de renunciar à sua candidatura de prefeito nas eleições municipais deste ano.

Havia grande expectativa na confirmação de sua candidatura e uma quase unanime opinião no meio político, de que venceria as eleições. Quem sabe até no primeiro turno, se viesse a concorrer. Era o que apontavam todas as pesquisas eleitorais feitas até aqui.

Nas duas últimas semanas correram boatos de sua desistência, antecipada pelas colunas dos jornais locais, gerando ainda mais expectativa a respeito do seu pronunciamento, e quais seriam as justificativas para tal decisão.

Confesso que eu não tinha a mesma expectativa, e infelizmente, elas se confirmaram.

Concordando ou não com a decisão, penso que a mensagem teria sido mais verdadeira se o nobre deputado admitisse que decidiu renunciar porque entendeu que o grupo atual no poder deveria eleger o sucessor.

Mas não foi o que ocorreu. E o que se viu, foi uma tentativa bizarra de justificar a decisão como uma espécie de “renuncia ao ego” pelo bem coletivo.

Como assim?  – Pelo bem da região, diga ao povo que permaneço como deputado estadual. – Isso não seria mais do mesmo?

Uma espécie de ilusionismo com as palavras?

Quem com alguma noção dos bastidores da política acredita nisso? Ah, entendi, o povo que não conhece os bastidores, os mecanismos e a malicia do sistema político, e na maioria das vezes vota de maneira apaixonada, muito mais nos fãs do que nos candidatos vai acreditar na versão … será?

Eis uma narrativa que tenta distorcer ou adequar a realidade dos fatos a conveniência de seus emissores.

No vídeo de pronunciamento, uma das justificativas apresentadas foi a de que permanecer no mandato de deputado seria mais coerente, em atendimento as críticas a quem abandona seus mandatos. E também, que seria a melhor forma de ajudar a região no enfrentamento da crise econômica causada pela pandemia do corona vírus.

não teria sido mais coerente ter rechaçado qualquer possibilidade de se candidatar em todo esse período, ao invés de assumir discursos dúbios e anunciar uma pré-candidatura para retirá-la dois meses depois?

Wladimir Mattos

Novamente, como assim? A possibilidade de abandonar o mandato e concorrer a eleição municipal não foi admitida publicamente por ele mesmo? Se cumprir o mandato até o fim foi o motivo central da decisão, não teria sido mais coerente ter rechaçado qualquer possibilidade de se candidatar em todo esse período, ao invés de assumir discursos dúbios e anunciar uma pré-candidatura para retirá-la dois meses depois?

Quanto ao desconforto em pedir votos durante a pandemia e o argumento que poderá ajudar mais como deputado eu pergunto: Um deputado estadual teria mais condições de ajudar a região do que o prefeito de uma cidade como Santos, que responde por 70% do PIB da toda a região?

Aqui estão sediados também, os principais hospitais da região, um Polo Universitário com 11 entidades de ensino superior, centros de comércio e construção civil, destacando-se ainda, que o segmento de serviços da cidade representa quase 70% dos empregos totais de toda a região.

Wladimir Mattos

Vejamos:

Com um orçamento anual de mais de 3,5 bilhões de reais, Santos é a sede administrativa da Baixada Santista. Do escritório de negócios da Petrobrás para o pré-sal, e de um dos maiores complexos portuários do mundo, que detém sozinho, 40% do movimento nacional de contêineres, além de um polo regional de turismo de negócios.

Aqui estão sediados também, os principais hospitais da região, um Polo Universitário com 11 entidades de ensino superior, centros de comércio e construção civil, destacando-se ainda, que o segmento de serviços da cidade representa quase 70% dos empregos totais de toda a região.

Até que ponto as “pessoas comuns” tem noção do grau de importância de Santos para a economia regional?

Manter-se no cargo de deputado estadual (apenas um entre outros 99 na ALESP) que quase nada consegue fazer diante da esmagadora força do executivo, seria mais importante que cuidar da economia de uma cidade que representa 70% do PIB da região? Convido o leitor a pensar.

Claro que os deputados estaduais são importantes. Mas você, caro leitor, consegue se lembrar de algum feito importante por parte de um deputado estadual além de destinar emendas parlamentares para hospitais e obras?

Seria bom pesquisar estes números, (afinal a internet está aí), e pensar um pouco a respeito.

No vídeo de justificativas, o deputado também argumentou que não está pensando em si próprio ao abrir mão da disputa eleitoral, já que estaria abrindo mão de uma vitória quase certa segundo as pesquisas (novamente anulação do ego) e sim nos eleitores da região, pois não seria correto abandonar o mandato para concorrer a eleição de prefeito.

Os números e argumentos apresentados no parágrafo anterior desmitificam esta tese. Como prefeito de Santos, além de defender os empregos que abastecem toda a região, seria possível criar um coalização política muito mais forte e representativa do que um único deputado. Esse grupo liderado pelo prefeito de Santos poderia ser mais efetivo na defesa dos interesses regionais.

Se isso ainda não acontece, é justamente porque os prefeitos atuais, preocupados em defender seus mandatos, não se comportam como estadistas, a ponto de colocar de lado seus interesses eleitorais de curto prazo, em benefício dos interesses regionais de longo prazo, como fazem os verdadeiros estadistas.

Se a narrativa é – “Os interesses da população estão acima dos meus” seria uma excelente oportunidade de provar isso, sendo o primeiro prefeito da história a liderar uma coalização política metropolitana, para auxiliar as cidades da região em projetos estratégicos de longo prazo, que diminuam suas dependências da economia de Santos, do Estado e da União;

Para não alongar ainda mais este artigo, quero apenas registrar meu respeito pelo nobre deputado professor Kenny e sua cordialidade no tratamento com as pessoas.

Mas como ativista político, não tenho o direito de omitir esta crítica. Nem deixar de afirmar de forma clara e objetiva, que a narrativa assumida pelo nobre deputado teve um único objetivo. Distorcer ou adequar a realidade dos fatos as suas conveniências.

Se a narrativa é – “Os interesses da população estão acima dos meus” seria uma excelente oportunidade de provar isso,

Não dá para acreditar que alguém com toda uma assessoria jurídica cometeria uma infração eleitoral desta de forma inconsciente (doar seu salário para o combate a pandemia em ano eleitoral) entregando a prova da infração nas mãos do próprio adversário.

E um direito legítimo de qualquer pessoa disputar ou não disputar uma eleição. Mas neste caso, as evidencias mostram que não foi em prol da população.

A sociedade não pode continuar sendo vítima destas narrativas maniqueístas que tentam imputar nobreza numa decisão de renunciar à candidatura apenas pela conveniência de não enfrentar as dificuldades que toda eleição, e todo mandato à frente de uma cidade exigem. Me incomoda profundamente este tipo de ilusionismo vindo de alguém que construiu sua imagem defendendo uma nova política.

As narrativas maniqueístas são pragas que precisam ser debeladas se quisermos amadurecer a sociedade em suas escolhas conscientes diante das urnas. Aqui não cabe julgamento quanta a decisão, ou insinuações de outra natureza ética, mas apenas a impressão de alguém que não conseguiu ver nexo algum nos argumentos apresentados pelo candidato, que desistiu sem nunca ter sido.

O julgamento (eleitoral) de tal ato ou omissão, ficará a cargo dos eleitores e suas consciências. O tempo há de ser, mais uma vez, o senhor da verdade.