Ficção, Realidade e a Revolução Cognitiva | Sérgio França Coelho – artigo

02 de janeiro de 2025

 

“A ficção é uma ferramenta essencial no caminho da verdade. Dela nasce a abstração humana e todas as ciências que conhecemos, como a escrita, a matemática, a medicina e a filosofia. Nessa dialética está contida a essência da natureza humana, em contrapor a própria realidade com suas abstrações.”

 

Na década de 80 Cazuza cantava em Maior Abandonado “…pequenas porções de ilusão … mentiras sinceras, me interessam…” na mesma época, em outro grande sucesso, Ideologia, ele cantou: “… Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder… ideologia, eu quero uma pra viver…”

Estes grandes sucessos de Cazuza mostraram como a poesia e a arte tem sido uma das melhores formas de expressar a necessidade humana de viver sua dualidade existencial – ficção/realidade, comumente expressada também na dramaturgia, através da máxima de que “a arte imita a vida”, ou “a vida imita a arte”.

Quando decidi retomar a leitura de “SAPIENS – Uma breve história da humanidade” de Yuval Harari, decidi também me aventurar na produção de uma série de artigos, com análises pontuais sobre este magnifico best seller internacional.

“A ficção permitiu a nossa espécie criar estórias antes de registrar sua história. Criar divindades e religiões, e a partir delas, fundar sociedades, reinados e impérios. Criar leis, sistemas financeiros, tradições culturais e instituições científicas”.

Aqui, começo tratando tema central da obra (ficção), como o primeiro de 4 artigos que pretendem analisar os aspectos levantados por Harari em seu livro, e sua relação no contexto da geopolítica atual e porque não dizer, no cotidiano das “pessoas comuns”.

O Livro em questão está dividido em 4 capítulos: 1. A Revolução Cognitiva, 2. A Revolução Agrícola, 3. A unificação da humanidade, 4. A Revolução científica e um epílogo.

Não por acaso, Harari inicia sua abordagem com a revolução cognitiva, traçando uma linha temporal a partir de quando outras espécies do gênero Homo coabitavam nosso planeta, até serem extintas pela espécie sapiens, que passou a ser a única na terra a cerca de 70 mil anos atrás. É neste primeiro capítulo que o autor atribui à revolução cognitiva o marco divisório da supremacia sapiens na terra, não apenas sobre as demais espécies homo, como também, perante todos os animais até os tempos atuais.

Harari destaca que é durante a revolução cognitiva que os sapiens adquirem sua sofisticada capacidade imaginativa e de linguagem para criar “realidades inventadas” (ficções), que apesar de só existirem na mente humana, em razão da capacidade de mobilizar milhares de pessoas em torno de suas ideias, interferem de fato, “no mundo real” das sociedades.

Em síntese, ao fruto dessa revolução cognitiva e suas capacidades, Harari chama em seu livro de ficção.

É provável que em nenhum outro momento da história conhecida, a ficção tenha assumido tamanho protagonismo nos destinos da raça humana. Pode parecer exagero tal afirmação, já que as ficções fazem parte da história e da trajetória das civilizações e sociedades humanas. No entanto, um novo e decisivo elemento nesta equação justifica minha percepção:

A informação descentralizada e distribuída no século XXI advinda da internet.

Antes de prosseguir, vale relembrar as definições do substantivo feminino FICÇÃO pelo próprio dicionário: 1. criação artística (literária, cinematográfica, teatral etc.), em que o autor faz uma leitura particular e original da realidade; 2. ato ou efeito de fingir; fingimento.

Veja que o dicionário também assume em sua definição literal, a dualidade desse substantivo. A ficção pode ser uma mentira, mas também, pode ser uma “realidade inventada”. Ou seja, algo que não exista no mundo da natureza, mas impacte a vida das sociedades humanas no seu ambiente natural, pode ser uma realidade inventada. Um bom exemplo disso é a pessoa jurídica, criada pelo direito para separar uma empresa do seu fundador.

“As pessoas sempre precisaram da ficção para confrontar a sua própria realidade. Ainda que de modo inconsciente, a ficção é a forma que cada cidadão comum se utilizou ao longo dos tempos para expressar sua humanidade, sua necessidade por transcendência e seus dilemas diante da morte.””

A ficção permitiu a nossa espécie criar estórias antes de registrar sua história. Criar divindades e religiões, e a partir delas, fundar sociedades, reinados e impérios. Criar leis, sistemas financeiros, tradições culturais e instituições científicas.

Voltando a questão geopolítica, seja internacional ou doméstica, os eventos dos últimos 5 anos, (pandemia, guerras e polarização política) começaram a mostrar concretamente, os impactos e efeitos da informação descentralizada e distribuída frente tal dualidade humana – ficção/realidade.  Desde o surgimento das primeiras sociedades, seus dogmas e religiões, da escrita e da própria imprensa, a informação centralizada possibilitou por milénios, o controle da opinião pública a partir de uma curadoria oficial, que pudesse estabelecer a narrativa dominante. Há pouco mais de uma década, esse cenário se modifica a passos largos, muito embora seus efeitos, ainda não sejam tão claros para a maioria.

As pessoas sempre precisaram da ficção para confrontar a sua própria realidade. Ainda que de modo inconsciente, a ficção é a forma que cada cidadão comum se utilizou ao longo dos tempos para expressar sua humanidade, sua necessidade por transcendência e seus dilemas diante da morte. No largo período em que esse aspecto se restringiu às famílias, comunidades, organizações privadas e sociedades religiosas sem repercussão nas grandes massas, tal contraponto não representou grande ameaça às narrativas dominantes.

No final dos anos 90 surge a internet e anos depois, as redes sociais. Não é mais possível centralizar e controlar a distribuição de informações. Aqui chegamos ao ponto central do capítulo 1. O dilema atual em discutir o controle das redes sociais, a agravamento da polarização ideológica, as instabilidades institucionais e seus impactos na geopolítica. É impossível instituir um “Ministério da Verdade” quando cada um de nós, mesmo intuitivamente sabe, que a linha que separa a realidade da ficção é tênue demais, e está se movendo o tempo todo.

A ficção é uma ferramenta essencial no caminho da verdade. Dela nasce a abstração humana e todas as ciências que conhecemos, como a escrita, a matemática, a medicina e a filosofia. Nessa dialética está contida a essência da natureza humana, em contrapor a própria realidade com suas abstrações. Alguém pode questionar se não seria perigoso continuar permitindo a disseminação de opiniões ou informações de forma descentralizada e distribuída da forma que temos hoje, sobe o risco de escalarmos a “desinformação”. Eu penso que nada é mais perigoso que o próprio ato de viver.

Para finalizar quero citar um dos pensamentos mais brilhantes de Blaise Pascal que trata da força e da justiça, sintetizando a dualidade humana como elemento fundamental de nossa evolução civilizatória:

“A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força é contestada, porque há sempre os maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso, portanto, pôr em conjunto a justiça e a força, e, por isso, fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo.”

Não será possível retroceder a era informação descentralizada e distribuída com o argumento de impedir a disseminação de notícias falsas. Exatamente pelo fato de que a notícia falsa nasceu junto com a própria revolução cognitiva e a capacidade imaginativa que nos trouxe até aqui.

Harari expôs brilhantemente em sua obra, que não é apenas a capacidade, mas também a necessidade da espécie homo sapiens em criar ficções, de contar estórias e histórias, as razões pelas quais essa natureza não pode ser contida.

 

Assim como cantou Cazuza, em mentiras sinceras me interessam. As mentiras sinceras interessam a todos que buscam as verdades inventadas. Que acreditam que em algum momento de nossa trajetória, o verbo se fez carne, e como imagem semelhança do poder criador, nós também possamos inventar uma realidade melhor.

Ironicamente, a mesma capacidade/necessidade que levou o homo sapiens a reinar sobre todas as espécies no planeta nos últimos 30 mil anos, elas também poderão levá-lo a extinção até o próximo milênio. Cabe a nós, fazer a melhor escolha.